sábado, 24 de julho de 2010

Pra entender um pouco mais de participação popular e controle social....

O poder local e a habitaçao popular

David Capistrano Filho
Alcalde de la ciudad de Santos-Estado de Sao Paulo
Versión en castellano: El poder local y la vivienda popular.


O que é poder local

O poder local em nossa concepção não é o conjunto de forças sociais que atuam numa comunidade, mas uma instância do Estado que tem abrangência no âmbito da cidade ou, no caso brasileiro, do município, concebido este por nossa Constituição como um dos entes da federação que forma nosso país, constituída ainda por estados e União. Diferentemente das esferas estadual e federal, no Brasil o município não obedece à divisão tripartite tradicional, já que não possui o Poder Judiciário, compondo-se pela Câmara dos Vereadores (Legislativo) e pela Prefeitura Municipal (Executivo). Portanto, em nossa concepção o poder local é sinônimo de poder público municipal.
A história do poder local no Brasil remonta às raízes ibéricas da colonização de nosso país e ao longo de quase cinco séculos a autonomia das instâncias locais conheceu fluxos e refluxos provocados pelos movimentos da formação de nosso estado nacional. Em todo o período colonial, em especial, mas também durante os dois impérios, as comunidades locais conheciam relativa autonomia oriunda principalmente das distâncias que as separavam da sede colonial e da metrópole e das dificuldades de comunicação com as mesmas. Assim, as vilas, cidades e províncias eram obrigadas a se organizar para resolver a maioria de seus problemas dentro de seus próprios limites. Apesar da centralização formal e burocrática do Estado nos poderes do rei ou dos imperadores, a presença real do poder principal era esporádica e intermitente.
Já perto da virada do século a centralização conheceu um período de maior força com a fundação da República, em 1889. Mesmo assim, como a chamada Primeira República se fundamentava sobre o poder oligárquico regional ou estadual, a descentralização continuou existindo na práxis política. Apesar de haver diretrizes nacionais definidas pelo Executivo e Legislativo centrais, prevalecia uma fragmentação do poder que favorecia uma certa independência regional. As demandas e interesses locais muitas vezes se sobrepunham às orientações vindas da sede. Essa configuração se manteve e se fortaleceu durante cinquenta anos e só se modificou com o advento da Revolução de 1930, que tinha justamente por objetivo e motivação se contrapor a ela.
A chegada de Getúlio Vargas ao poder ocorreu num processo em que se buscava romper as origens oligárquicas do Estado brasileiro e promover uma centralização capaz de lhe dar condições para alavancar a industrialização nacional. Um ato simbólico que consegue dar a dimensão do que os revolucionários de 1930 queriam fazer e fizeram foi a queima das bandeiras dos estados, significando o surgimento de um verdadeiro Estado nacional, que a partir do golpe de 1937 assumiu um modelo influenciado pelo fascismo. Apesar de a quebra do poder oligárquico não ter sido completa, Vargas conseguiu restringi-lo a seus limites territoriais e implantou, pela primeira vez na história brasileira, a subordinação real de estados e municípios à vontade da sede da federação.
Com a saída de Vargas da presidência da República e o fim de seu Estado Novo, em 1945, inicia-se a democratização do país, o que permitiu o ressurgimento dos municípios como instâncias de poder autônomas e atuantes. Essa nova descentralização conhecia, no entanto, limites bem brasileiros: onde havia uma preponderância de forças políticas de esquerda ela foi adiada ou mesmo impedida, já que o poder central estava em total consonância com as diretrizes americanas da Guerra Fria.
O breve período democrático conheceu seu fim em 1964 com o golpe militar que instalou a ditadura que duraria pouco mais de vinte anos. Um novo período de concentração de poderes se iniciou, dessa vez com uma violência inédita que cassou os direitos políticos de prefeitos recém-eleitos, impediu a realização de novas eleições e castrou por completo a autonomia de muitos municípios, sob a alegação de que estavam em área de segurança nacional. Dentre esses estava a cidade de Santos, que viveu um longo período sem eleger seu prefeito por abrigar o principal porto do país e ter uma tradição de esquerda, a ponto de ser conhecida como Cidade Vermelha, alimentada principalmente por um forte movimento sindical, em especial o dos trabalhadores portuários.
O processo de redemocratização do país se desenvolveu ao lado do crescimento das pressões descentralizantes na busca de retomar o verdadeiro caráter de federação do Estado brasileiro. Ainda em 1976, quando da primeira vitória eleitoral expressiva das forças democráticas sobre a ditadura, o movimento municipalista se reforçou. Naquele ano, a oposição conquistou suas primeiras prefeituras e começou experiências administrativas de sucesso, como as de Lajes, no Paraná, e Piracicaba, em São Paulo.
Essa luta pela reconstrução da democracia acabou por desembocar no Congresso Constituinte que elaborou a nova carta magna do país, em vigor desde 1988. A nova Constituição procurou responder às demandas por autonomia política e financeira dos entes da federação em relação à União e tratou de alterar a perversa distribuição de receitas entre as instâncias de poder. Muito foi conseguido, apesar de os municípios brasileiros ainda terem dependência financeira considerável (ver tabela 1) se compararmos com a situação vivida por alguns países europeus como a Suécia, onde 67% da arrecadação pública fica na esfera local.
Aqui cabe um parêntese sobre uma peculiaridade da história municipalista no Brasil. Mesmo durante os períodos de maior centralismo o município manteve sua capacidade de tributar, ainda que mantida dentro de limites estreitos. Essa característica diferencia o Brasil de muitos países latino-americanos e europeus, nos quais o poder local não tem arrecadação própria, apesar de ter receita garantida.
Durante a reconstrução democrática, novos atores políticos e sociais surgiram e se consolidaram como interlocutores do Estado e representantes da sociedade. Os movimentos sociais, em especial os urbanos, como o sindical e os por moradia, passaram a exigir o apoio das autoridades locais para a realização de suas lutas. Esse ambiente ajudou a reforçar a tendência descentralizadora que se consubstanciou na Constituição de 1988.
Hoje, do ponto de vista legal, os municípios brasileiros gerenciam diversas áreas da atuação do Estado. É assim com a saúde e a educação básica, nas quais o governo federal tem o papel apenas de desenhar as diretrizes gerais. É o município quem deve suprir as necessidades da população nesses e em outros serviços tipicamente urbanos, como coleta e destinação de resíduos e lixo, atividades culturais, esportivas e de lazer.
No entanto, no que tange à habitação popular, os municípios ainda não têm como regra uma presença ativa na construção de moradias, embora possam legislar sobre o tema. Ainda há uma dependência grande em relação aos estados e à União, principalmente por causa das linhas de financiamento e por falta de vontade política dos chefes dos executivos municipais de reservar uma parte de seus orçamentos para habitação. Cidades que têm suas próprias políticas habitacionais, como Santos, ainda são exceções.
Por fim, nessa definição de nosso conceito de poder local, cabe ressaltar uma cararacterística brasileira desse processo de descentralização. Em nosso país não existe um vínculo necessário entre a municipalização e políticas neoliberais de busca de qualquer variante de um Estado mínimo. Pelo contrário, como esse movimento funcionou como um dos motores da democratização do país, o que sua vertente progressista busca é um Estado desprivatizado e capaz de agir para disciplinar as forças do mercado no âmbito municipal.


O que é habitação popular

Antes de tudo gostaríamos de reafirmar um princípio que norteia toda a nossa ação nessa área: a habitação constitui um direito humano básico. Afinal a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo 25, prevê que todos têm o direito a um padrão de vida adequado para sua saúde e bem-estar e de sua família, incluindo... moradia.... Sendo assim, considero um dever do Estado prover as condições para o pleno exercício desse direito fundamental.
Levando-se em conta que o Brasil sustenta uma imensa desigualdade social, com uma concentração de renda quase sem similares no mundo, devemos considerar que a uma enorme parcela da população não são dadas possibilidades de acesso ao mercado imobiliário. O processo de fragilização das relações de trabalho, em curso no mundo e acirrado em nosso país com a chegada ao poder do atual governo federal, só tem agravado essa realidade.
Cada vez mais os trabalhadores, mesmo tendo mantido seus empregos, não conseguem atingir um nível de renda suficiente para adquirir ou construir um imóvel. Também é crescente o número de pessoas desempregadas ou jogadas no chamado mercado informal, geralmente um eufemismo para subemprego ou mesmo para trabalho semi-escravo. Com isso é crescente também a demanda por habitação. No Brasil como um todo, para as faixas de população mais carentes, com renda familiar de até 300 dólares/mês, a demanda habitacional é superior a 10 milhões de unidades, sendo necessárias cerca de 15 milhões de novas habitações até o ano 2000.
A produção da imensa maioria das habitações ocupadas pelas faixas da população de baixa renda, até este momento, tem ocorrido através da iniciativa direta dos próprios usuários. Particularmente as famílias com renda mensal inferior a 100 dólares/mês, via de regra, têm acesso a moradias precárias através da produção espontânea (auto-ajuda ou ajuda-mútua) ou de programas especiais nos quais está presente algum tipo de subsídio oficial, utilizando-se em ambos os casos, as chamadas habitações evolutivas, onde o usuário encarrega-se de finalizar a moradia de acordo com suas possibilidades financeiras.
Portanto, quando falamos em habitação popular estamos nos referindo a políticas e ações do poder público para assegurar a esse segmento acesso a moradias adequadas. Isso só pode se dar se não houver vinculação com a lógica do mercado que em geral ignora as necessidades dessa população excluída e também se o poder público oferecer financiamentos e subsídios.
Incluimos ainda em nosso conceito de habitação popular o oferecimento de acesso aos serviços urbanos a essas pessoas de tal maneira a assegurar-lhes condições de vida saudáveis e dignas, transformando-os em verdadeiros cidadãos. Sem esse pressuposto, a moradia fica resumida à garantia de um teto para que essa população possa se reproduzir, mantendo, no entanto, as mesmas condições de exclusão e miséria em que se encontram.

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